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domingo, junho 06, 2010

Na hora da sua morte


Quando escrevi o texto anterior, estava claro que alguém próximo de mim ia morrer. Era uma percepção minha, e só minha. O texto foi escrito em 29 de maio, horas depois que eu soube da internação da minha avó (que não corria risco de vida, é bom frisar). Ele só entrou no ar na última sexta para não atrapalhar a sequência de textos sobre a Copa.

E quando vocês leram o texto, minha avó já estava morta. Desde dezembro venho me preparando para esse dia, que chegou sem alarde, sem desespero. Por morar longe, eu observei melhor os sinais que o fim da vida da minha avó estava chegando e que eu teria que estar preparada para isso.

Não tenho medo da morte. Depois que perdi meu pai, encarar o rito de passagem tornou-se algo necessário para mim. Meu pai morreu num dia, foi enterrado no outro, e no dia seguinte eu já estava na escola. Uma semana depois fazia prova. A vida continuou, graças à minha mãe e minha avó, que me ensinaram a superar a dor.

Vovó era muito moderna, descolada, intensa. Como boa canceriana, era prática. A morte para ela era o fim de um ciclo, e ela achava que estava na hora de sair de cena. Mesmo tendo uma boa saúde nos últimos anos, sua memória começou a falhar e seu corpo começou a pedir o descanso. Ela dizia que não queria viver dependendo de ninguém, e se não tivesse mais função na vida, era melhor morrer.

Vovó, que tinha um nome pouco comum - Lenira - era mineira de Itajubá. Professora, fugiu de casa aos 18 anos e foi morar no Rio. Adorava escrever, desenhar e pintar, era extremamente politizada, inteligente, tinha veia artística. Podia ser atriz porque era linda, dona de belos olhos verdes. E pintava o cabelo de loiro porque ela não era boba: assim os olhos realçavam.

Quando eu tinha 4 anos, em minha primeira festa de aniversário grandiosa - com direito a um bolo enorme da Branca de Neve - passei por um momento constrangedor. Após o 'parabéns para você', fui até a cozinha dar o primeiro pedaço do bolo para minha avó. Meus pais ficaram chateados, em especial minha mãe, que depois me deu uma bronca e disse que o primeiro pedaço devia ser dela, e o segundo do meu pai.

Lembro - como se acontecesse agora - da cena: meus pais, constrangidos, e eu à caça da vovó, que tomava uma cervejinha na cozinha. O primeiro pedaço de bolo não é para a pessoa que a gente mais gosta? Então...

Vovó contava histórias, fazia cadernos de desenho para mim, era a típica avó que todo neto sonha ter. Eu era a primeira neta mulher, e por isso tinha uma preferência clara. Ela quem me dava mesada, me levava para viajar - adorava nossas viagens a Petrópolis -, adorava me carregar para passeios e almoços. Ela foi importantíssima para minha infância e adolescência e, na morte do meu pai, foi a pessoa que me protegeu da dolorosa noite do velório.

Eu cresci, comecei a trabalhar e vovó foi envelhecendo. De gênio forte, começou a controlar os netos - os outros, eu não - e chegamos a bater de frente uma única vez. Ainda assim ela sempre me respeitou, nunca questionou minhas escolhas (embora esperasse de mim um casamento tradicional com direito a alguns filhos), e apoiava minha mudança para São Paulo, mesmo nunca me visitando lá.

Um ano depois que eu fui para Sampa vovó começou a ter uma série de problemas de saúde. E a velhice chegou rápido, sem dó nem piedade, tornando-a uma pessoa triste, sem aquele espírio aventureiro que sempre foi sua característica. Ainda assim, quando eu ia visitá-la, ela sempre perguntava se eu não tinha ido à praia. Vovó sabia tudo, e nunca se importou que eu ficasse mais na praia do que com ela. Mesmo eu não sabendo lidar com sua velhice, ela ainda assim ficava feliz porque eu continuava sendo a neta que estava sempre por perto.

A última vez que eu a vi, nos poucos meses em que ela morou no meu quarto no Rio, vovó me reconheceu e me olhou com o mesmo brilho nos olhos verdes. E foi só eu virar as costas para ela se desligar lentamente, chegando ao ponto de precisar ser internada. Resolveu sair de cena num feriado, de modo que eu não viesse para o enterro mas chegasse para cuidar da minha mãe.

Ela sabia que eu não queria reviver as dores e lembranças da morte do meu pai. Ela me poupou até o fim de presenciar seus piores momentos. E na longa viagem de volta para casa, eu lembrei de tudo que marcou minha vida com ela esteve presente. Lembrei, especialmente, que eu pareço muito mais com a vovó do que nós percebíamos, e que até a calça roxa que ela tinha - e que minha mãe, que é uma mulher monocromática, achava um escândalo - eu tenho igual.

(Eu ri quando me toquei que tenho uma calça roxa como a vovó tinha. E vamos combinar que calças roxas são bens incomuns.)

Vovó, em sua última cena, diria: eu não tenho medo da morte. O que vou sentir é saudades da vida.

E por não poder mais usufruir da vida, ela preferiu sair de cena sem alarde, discretamente, deixando muita história para eu contar. É óbvio que sentirei muitas saudades, especialmente de dar um abraço bem apertado nela e de ver seus brilhantes olhos verdes... mas quando chega a hora, é melhor partir dignamente do que viver sofrendo - coisa que não combinava com ela, definitivamente.

Poxa, vovó, eu te amo tanto. E ainda bem que o amor é eterno. Manda um beijo para o meu pai. Saudades dos dois - mas eu sei conviver com isso, vocês sabem muito bem.


Janaina Pereira

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