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sexta-feira, março 23, 2007

Alejandro Sant'Ander - Parte 2


Quando se escolhe a pílula vermelha
(dos vírus e outras resistências)



"O controle da alma", na tese de Foucault, é feito de maneira tão sutil, que até o indivíduo que se julga contestador acaba envolvido pelo jogo. Alguns exemplos são claros. Quantos não defenderam a ação norte-americana no Iraque, na Etiópia, no Haiti e, mais recentemente, em Kosovo, erguendo a bandeira das minorias massacradas por um "ditador sanguinário"? A versão oficial, a história dos vencedores, conquista os corações e todos vão às ruas pedir a morte de Sadam, e de outros "inimigos número 1" e se esquecem dos interesses comerciais e políticos da potência americana. A cada rebelião na Febem os programas de debates e as segundas páginas dos jornais se enchem de debates sobre o que fazer com os menores. Do extermínio às prisões agrícolas não há uma voz que se levante para discutir a validade do sistema carcerário, do sistema penal, do sistema judiciário, não quem discuta as condições materiais que levam, como dizia Marx, à lupemproletarização.

A TV tem o papel do grande mediador, que leva todos ao consenso por meio da sedução. Sai de cena a repressão física explícita como controle e entram as trilhas sonoras, as imagens, o pássaro sujo de petróleo, a baleia encalhada, os números de telefone para doar cinco, dez, trinta reais. Regis Debray assinala que o Estado sedutor vibra por meio de todas as suas antenas com os acontecimentos felizes e infelizes da aldeia global. "Ao se comover cada vez mais e ao se engajar cada vez menos, acasalando a excitação visual com a apatia moral, ele pegou o mundialismo passivo" .

A preocupação ecológica excessiva e a filantropia exagerada causadas pelo desespero frente ao Estado incapaz de resolver a miséria, distancia o indivíduo do dever político de contestar, de quebrar com a ordem, de querer trocar um sistema pelo outro, de exigir um novo mundo. Contestação, protesto, revolução são palavras quase que proibidas, vistas como parte de uma espécie de dicionário de dinossauros.

No entanto, novamente como no filme, a Matrix deve parecer perfeita. E os enigmáticos agentes, que na produção cinematográfica aparecem na caricatura de burocratas de estado, estão para manter a ordem, detectar novos vírus e aplicar programas eficientes de extermínio. Os agentes na sociedade de controle abrem as devidas brechas nos seus muros para a participação. Aqui entram as páginas policiais, os cadernos de geral, as reportagens sobre a fome na África, os documentários sobre os sem-terra, as entrevistas com as vítimas da guerra, quase sempre acompanhadas do 0800 com o número da conta de um banco onde o indivíduo indignado pode contribuir com sua parte para mudar o mundo ou simplesmente manifestar sua revolta.

Ligando para o apresentador da TV, mandando uma carta para o jornal ou pintando a cara o súdito veste a fantasia de contestador, geralmente filiado a uma ONG. O governo faz sondagens e descobre onde a população tem demandas e faz políticas específicas para cada uma. Multiplicam-se os direitos sem multiplicar iniciativas de acabar com estas demandas. Assim, o pacote de açúcar depositado na pilha de donativos faz o sujeito virar as costas e voltar para casa alegre por ter participado e contribuído com sua parte.

Não é o caso, evidentemente, de desmerecer por completo as campanhas de fraternidade. O próprio sociólogo Betinho, idealizador da Ação pela Cidadania, a mais famosa das campanhas de arrecadação de alimento nos últimos anos, dizia que tudo aquilo era um paliativo, uma etapa inicial e de emergência para uma situação desesperadora. Porém, a multiplicação dos "criança esperança" e "SOS" não trazem no contexto a crítica ao capitalismo, ao sistema neoliberal que, por definição, pretende a livre concorrência entre os indivíduos e o sucesso para o mais forte. É claro que para quem estava desempregado passar a ganhar R$ 150,00 por mês em trabalhos pesados como de limpeza das estradas de ferro é um grande avanço. Mas e as demais condições para esta população sobreviver? Lazer, educação, moradia, saúde e todas as outra famosas metas sociais que o capitalismo promete atingir? É como se nivelasse por baixo a exigência.

Novamente aqui, ficção e realidade (realidade?) se confundem. Um dos personagens pode comer um bife suculento num belo restaurante mesmo sabendo que é falso, criação da Matrix, e que continua sendo um escravo, que continua sendo uma pilha. Da mesma forma que contestador que se satisfaz quando a Coca-Cola doa R$ 100 mil para a campanha da fraternidade. Continua o mesmo capitalismo, continua o mesmo neoliberalismo, continua a mesma exploração do homem pelo homem.

E onde estão as resistências? No Manifesto do Partido Comunista, Marx afirma que "a burguesia produz seus próprios coveiros". Ou seja, o próprio desenvolvimento da burguesia mina o terreno em que ela assentou seu regime de produção. Para Marx, os adversários da burguesia deveriam usar as próprias armas da burguesia na luta. Portanto, a resistência deve acontecer no próprio seio do inimigo.


Amanhã: última parte de Quando se escolhe a pílula vermelha
(dos vírus e outras resistências)

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