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terça-feira, dezembro 27, 2005

Não identificada



O pensamento que ronda minha cabeça nos últimos dias é minha total perda de identidade. Estou um pouco cansada de ser estrangeira no meu próprio país. Depois da fase difícil de adaptação a São Paulo – o primeiro ano foi um poço de lágrimas – vieram todas aquelas coisas que me ajudaram a fixar residência aqui. Agora, quase cinco anos depois, sinto-me completamente perdida entre os arranha-céus paulistanos e o mar carioca.

O Rio foi, e sempre será, a minha casa. Mas já faz um bom tempo que meu olhar se entristece quando volto para lá. Os amigos, aos poucos, foram tomando outros rumos. Hoje o que restou foram lembranças, afetos distantes, e aqueles que são fiéis e mantém contato. Só que sempre tem alguém para falar que meu sotaque mudou, que eu mudei, que virei paulista. E se há uma coisa que me irrita profundamente é quando alguém diz que virei paulista.

Eu sou carioca, ainda que more no Japão. Mudar de cidade não significa mudar o local do meu nascimento. Nunca vou perder minhas raízes: eu sei de onde eu vim. Sou carioca, suburbana, arquibancada de Maracanã. E isso ninguém vai tirar de mim. Então porque será que é tão difícil para as pessoas aceitarem que o outro mudou de vida, mas não de personalidade? Só porque não moro mais no Rio e incorporei algumas gírias paulistanas não significa que eu não sou mais carioca. E eu fico com muita raiva quando alguém tenta achar defeitos em mim, só porque moro em São Paulo.

Eu não me arrependo de ter vindo pra Sampa. Pelo contrário, esse é o maior orgulho que tenho. Sobrevivi aqui com minhas lágrimas, sozinha, com poucas pessoas me ajudando. Tive apoio, muito mais moral do que financeiro, e isso fez de mim quem sou hoje. Eu pensei em voltar pro Rio mil vezes, mas eu sabia que tinha que ficar. O Rio me fez uma pessoa insatisfeita com meus caminhos profissionais, e foi o Rio que me expulsou de casa. Foi a falta de perspectiva, a falta de mercado de trabalho, a falta de qualquer possibilidade de vitória na vida, que me tirou de lá. São Paulo me deu tudo que eu tenho hoje: acolheu-me de maneira fria, para que eu pudesse ser forte; olhou-me preconceituosa, para que eu pudesse ser resistente; fez de mim uma pessoa solitária, mas que hoje é capaz de enfrentar o mundo.

Detesto que questionem meus valores só porque sai da minha cidade. Detesto que me julguem pelo meu sotaque ou pelo tamanho da minha saia. Precisei me adaptar a uma nova realidade: São Paulo é diferente do Rio e ponto final. Eu gostaria de nunca ter feito esta escolha, mas já que fiz, só tenho a agradecer todas as oportunidades que tive aqui. A todos aqueles que fizeram meus dias piores para que os melhores tivessem mais valor. É em São Paulo que eu moro, é aqui a minha casa. Por mais que a cidade tenha defeitos, por mais que as pessoas insistam em ser estranhas, eu sei muito bem o que estou fazendo aqui.

Continua a velha questão: o preconceito idiota que coloca cariocas e paulistas de lados opostos, só serve para machucar quem opta, como eu, a sair de seu habitat. Ao atravessar a fronteira que separa a cidade em que nasci da cidade em que moro, eu sabia que teria pela frente um caminho de pedras. Trilhei este caminho e agora estou aqui. Escrevendo para você, carioca, paulista, mineiro, paranaense, gaúcho, baiano, alagoano, pernambucano, paraense, goiano... para você, brasileiro, que se sente estrangeiro em seu próprio país. Para você que tem sotaque e só percebe isso quando sai de casa. Para você que todo dia precisa matar um leão, um dragão, e todos os bichos que colocarem na sua frente.

O Brasil é tão grande de preconceitos e bairrismos e isso é profundamente triste. Sou carioca, moro em São Paulo. Sou filha de cariocas, com avós mineiros e pernambucanos. Sou descendente de portugueses e índios, tenho sangue italiano e judeu, sou espiritualista e acredito em Deus. Sou filha de Iemanjá, nasci perto do mar, mas também gosto de montanhas. Sou colorida, bronzeada e falo com chiado. Sou um ser não-identificado porque deixei meu passado carioca para trás em busca de um futuro mais promissor.

Mas não esqueçam que sou humana. Sou gente. E antes de ter sotaque, eu falo e escrevo a língua portuguesa muito bem. Antes de ser carioca, sou brasileira. E não aceito ser tratada como estrangeira dentro do meu próprio país... pior ainda, dentro da minha própria cidade. Eu posso ter mudado a maneira de pensar, de agir, de viver – e mudar faz parte da vida, é o que faz o mundo girar. Mas eu não perdi minha essência, verdadeira e sincera, minha alma rebelde, meu sangue enfurecido. Eu sei de onde vim e tenho orgulho disso. Não quero continuar me sentido perdida entre duas cidades que me aceitam, mas também me rejeitam.

Talvez para você, paulistano que nunca saiu daqui, ou carioca, que nunca deixou o Rio, este texto não faça o menor sentido. Mas certamente algum ‘exilado’ vai se identificar aqui. E eu acho que está na hora de deixar de me sentir exilada também. A verdade, nua e cura, é simples assim: eu sou carioca e moro em São Paulo. Ser carioca é algo eterno, nunca vai mudar, e eu tenho muito orgulho de ter nascido no Rio. Morar em São Paulo, por hora, também é algo que não quero que mude, e eu tenho muito orgulho de morar aqui. Portanto, quem quiser me olhar torto porcausa disso, paciência. Não estou aqui para agradar a todos. Aliás, meu negócio nunca foi explicar. Eu gosto mesmo é de confundir.



Janaina Pereira

Comentários
Jana,
Não se sinta estrangeira. Seu texto é belo e inteligente, mas transpira uma certa tristeza. Você sempre será bem acolhida entre nós e mesmo não sendo um paulista autêntico, sou um morador do ABC que lhe preza muito.
 
Brilhante a sua análise da diferença de vida entre São Paulo e Rio. Estendo o conceito de brilhante para todos os seus escritos. Obrigado. Penso igual em quase tudo.
 
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